"A senhora pode esclarecer o Tribunal e explicar o que se passou naquela noite?"
A pergunta era clara e direccionada a ela.
Porém nunca a resposta foi tão complexa e complicada de criar ou exprimir.
A fatídica noite começou como sendo uma das demais rotineiras desta vida.
Ela seguiu para casa após um café. Sozinha, serena, simplesmente a fazer o caminho para poder finalmente descansar no seu lar. Apanhou o comboio, o último daquele dia. Seguiam nele mais quatro pessoas, desconhecidas umas das outras, apenas à espera da sua estação de saída. Entre solavancos a viagem continuava, mas iria ter um rumo inesperado.
Eis que o comboio pára e ele entra.
Mudo, olhar frio e emsamblante carregado de quem se calhar tinha afogado as mágoas num final de uma garrafa. Lentamente encosta-se a um dos postes da carruagem. Perante os solavancos do velho comboio nocturno eis que acidentalmente bate num dos passageiros que prontamente lhe berra "Vê se te seguras seu bêbado!! Seu vagabundo". O olhar frio virou de raiva e sem contemplação saca uma faca do casaco e ataca o passageiro veemente com várias facadas no peito. Perante o sangue desvariado e os berros dos outros passageiros ele, sedento e cego, procura-os e volta a disferir facadas constantes sem dó da dor que provocava. Quatro mortes sem dó nem piedade, sem razão ou argumento.
Ensaguentado procura mais vítimas e eis que a encontra. Porém ela não gritou. Apenas ofegante com toda a situação encontrava-se abaixada e abrigada entre bancos de comboio na esperança de aquela não ser a sua última noite. Eis que o olha nos olhos e, quem sabe por magia, ela não viu o monstro que esfaqueou quatro almas em poucos minutos; Ele, mesmo empenhando alta a faca ensaguentada, não a atacou. Apenas respirava a alto ritmo e fulgor como se a mente não deixasse que a faca magoasse aquela mulher.
O entrelaçar de olhar continuou intenso. Entre o silêncio ela suavemente colocou a sua mão na cara dele, mesmo enquanto ele não arredava de ter a faca em riste. Ela viu algo ali, um sentimento que superou o medo e o horror. Lentamente chegou a ele de tal modo ternurento e próximo que ele acaba por largar a faca e ficou sem reação perante tal gesto. Com lágrimas nos olhos a escorrer na cara cheia de sangue aproveitou a paragem do comboio e saiu a correr da carruagem. Ela manteve-se estática e sem reacção.
Mais tarde ele foi encontrado por um agente que, ao ver todo aquele vermelho "pintado" nas roupas dele o deteve. Confessou o crime quase sem pressão e mais tarde encontraram-na para ela poder prestar declarações sobre o que se tinha passado. E ali estavam de novo no mesmo lugar, desta vez sob o olhar atento da justiça.
Enquanto testemunhava tentava não olhar para ele, com receio de magoa-lo como quem é a força final que o vai condenar. A mulher que amou o monstro estava ali, a dizer ao mundo que aquele homem assassinou quatro pessoas, mas não conseguia dizer que o ama desde essa noite.
Sai em lágrimas do tribunal por saber que ele seria condenado sem contemplação ... e sem nunca lhe poder dizer o que sente. Ela viu o horror, mas sem explicação amou a criatura que o fez.