por Daniel André Teixeira'



A história que se segue é real.
Foi vista por mim, de perto, e demonstra bem que por vezes a ilusão desvanece com a realidade crua e dura quando a mesma nos aparece à frente.

Num qualquer restaurante fui para almoçar com a minha mãe.
Enquanto esperávamos mesa atrás de nós aguardava também um senhor. Idoso, bem arranjado, sorridente e munido de um bouquet de flores.Certamente era um dia especial.

O acaso fez com que as nossas mesas fossem paralelas, com uma diferença incontornável: o senhor continuava sozinho numa mesa para dois, pedida especificamente por ele. Com o passar do tempo colocou o ramo de flores no lugar vazio. Quando questionado pela empregada disse que as flores "eram de alguém que cá não está". No ar ficou a ideia que era uma espécie de homenagem, um possível recriar de um almoço que costumava ter com alguém já falecido, algo que enterneceu o coração da empregada que lhe dedicou um pouco mais de atençao.

O senhor lá almoçou (pouco), sempre cabisbaixo e sem dizer muitas palavras. A comida sobrava no prato enquanto a jarra do tinto da casa teimava em ficar vazia. Lá colocava as mãos na cara como se quisesse esconder-se da sociedade, daquele restaurante cheio. Algo não estava bem.

Eis que chama a empregada e lhe pede para que lhe tire uma fotografia, mas que a mesma apanhasse as flores que trouxe. "É uma recordação deste dia?" perguntou a empregada. "Não, é para enviar para o Facebook da pessoa que não apareceu" respondeu o senhor. A empregada estava em choque.

O senhor prontamente explicou o sucedido. Era viúvo, e após alguns tempos nas redes sociais foi mantendo contacto com uma senhora, jovem mulher essa que parecia ter todo o interesse em sair com o senhor. Até aquele momento estava sozinho mas poder voltar a sair com uma mulher deu-lhe esperança e a ilusão de poder voltar a ter uma vida a dois. Lá combinaram esta saída ("eu serei o senhor com um ramo de flores" disse o senhor, para ela o identificar no restaurante) mas sem apelo nem agrado a senhora faltou ao combinado e revirou a vida do senhor ao contrário, sem que tivesse direito a uma justificação.

Estive assim a testemunhar de perto uma situação em que ficou demonstrado o lado negro das redes sociais e da ilusão que pode trazer aos mais desprotegidos. Toda a conversa, a "companhia" no ecrã do telemóvel que ela lhe ia trazendo era apenas fachada sem conteúdo, apenas brincadeira para passar o tempo. Não sei como estaria a jovem senhora em questão, mas o senhor estava destroçado, abandonado e sozinho numa refeição que pouco sabor lhe teve.

Sempre cabisbaixo saiu ainda primeiro do que eu, visivelmente abatido com a situação. O cabelo outrora penteado estava desengonçado e com a camisa já de fora lá se dirigiu à porta. Nunca é tarde para aprendermos lições nesta vida, espero mesmo que para bem deste senhor esta situação tenha trazido mais uma: Não deixar que a ilusão destrua as coisas boas que a realidade nos traz.




O nome foi esquecido, por ele e pela sociedade.
Mais depressa é reconhecido por um qualquer serial number ou por fotos de reconhecimento num qualquer relatório. É mais um, inocente como muitos que são abandonados à sorte de uma vida sem a protecção de alguém que dignamente se pode apelidar de pais.

Órfãos de desígnio, muitos também de alma, tentam suportar esta vida entre paredes de orfanato resgatados de uma infância de maus tratos e podridão humana ... no entanto este teve um vislumbre de uma realidade melhor.

Numa certa tarde um casal pediu para adopta-lo. Era a chance de um recomeço. Prontamente trataram de o lavar e preparar uma roupa apresentável para seguir viagem com o casal. Não soltou qualquer palavra nem quando foi apresentado nem durante a viagem, qual mudo num mundo ruidoso. Apesar das tentativas para que o jovem reagisse tudo foi em vão, lá seguiu de olhar vazio mirando a paisagem que passava no seu vidro.
Entrou naquele que seria o seu quarto. Aí, sempre de maneira resguardada e tímida, lá ia pegando nos brinquedos deixados no chão pelo casal numa tentativa de integrar o jovem rapaz. Mas nada o fazia falar nem sorrir. O cenário à mesa não mudou de timbre e todos jantaram sem que o jovem larga-se uma palavra, apenas acenos com a cabeça.

Ao cair da noite eis que surge o pesadelo.
"Que ideia foi a tua de traze-lo?? Ele vem destruído, é esta a ideia de filho que queres mostrar? Estás satisfeita com a escolha, um rapaz que não fala, não reage??". Em plena sala ouve-se o discutir enquanto no andar de cima o pobre rapaz ouve tudo. A mulher por seu lado chora compulsivamente enquanto ouve o marido martirizar a esposa pela escolha. Ouvem-se copos a partir e portas a bater e um silêncio assombroso cai até ao final da noite. O rapaz sabe que a vida o trouxe de novo para um lar que não o vai cuidar e que o vai descartar de um futuro melhor.

Acorda cedo e ao descer as escadas o seu "pai" estava à porta. Depressa percebeu pela mala feita (que nunca foi desfeita) qual seria o destino da viagem. Era tempo de voltar ao orfanato. Já no carro, cabisbaixo e com lágrimas nos olhos, continuava calado enquanto a esposa tentava impedir o marido de devolver aquele infeliz rapaz. Ao chegar era bem audível os berros do homem para o director do orfanato como se o jovem fosse um qualquer bem que foi vendido com defeito e que por isso tinha de ser devolvido à loja. O lado desumano e selvagem foi patente, o homem não queria um filho assim, tudo enquanto o rapaz era levado para a sala comum. 

A senhora por seu lado não conseguiu ve-lo ser levado sem antes o abraçar. Falou-lhe ao ouvido dizendo "desculpa não termos sido a família que devias ter por direito" enquanto chorava no seu ombro. As portas de acesso à sala comum fecharam e ele lá estava com os outros meninos.
 
Foi sonho que virou pesadelo vivido em algumas horas. Fica a esperança no ar que no futuro ele e tantos outros tenham a chance de ter uma verdadeira família e assim serem felizes.

Tudo o que foi escrito em cima não é baseado numa história verídica, mas bem podia ser.




Os homens pensavam que ele tinha o emprego de uma vida.
Noite após noite elas desfilavam ao lado dele, trocando de quarto e de cliente, num qualquer local de divertimento nocturno. Com ou sem roupa, entre banhos e trocas de roupa rápidas porque a noite corre e o tempo não pára os olhos dele eram a sombra delas. Um negócio que ele geria e conhecia como a palma da mão.

Homem de poucas palavras, nunca foi visto sem o seu fato de alta costura italiana e sem o seu whisky com duas pedras sempre perto. O telemóvel vibrava constantemente porque o "mundo não pára de rodar" e o seu olhar era de constante atenção ao que o rodeava. Nada lhe escava, e nem podia ser de outra maneira. Tranquilamente se movia entre lounges e quartos onde tudo acontecia, sempre mudo mas com a figura de autoridade que quem era cliente sabia que devia respeitar.

Não tinha amigos, se os tinha nem se manifestavam.
Fugia a isso de afinidades ou afectos, desengane-se quem pensava que ao lhe pagar a rodada ou a conta fazia dessa pessoa um amigo. Era apenas mais um a querer um favor, uma entrada sem pagar ou um par de bebidas por conta da casa. Sempre foi assim, alguém a querer ser alguém à conta do patrão num mundo difícil. Não se deixava enganar com truques fáceis.
Não se deixa levar pela beleza da noite. Tanta mulher bonita podia ser a tentação perfeita para um coração de pedra ceder, mas mesmo estando de perto com tamanho poder de sedução ele não se deixa levar. Talvez todos estes anos de "negócio" lhe tenham criado o entrave de se poder apaixonar e deixar uma mulher cair neste mundo.

As chatices daquelas noites mais atribuladas não o faziam suar. Caso alguém fosse mais longe do que devia era uma questão de estalar os dedos que prontamente dois senhores bem constituídos entravam em acção retirando o senhor de dentro do quarto (a bem ou a mal) e mostravam-lhe a porta de saída mesmo que ainda não estivesse "apresentável" para estar nos passeios da cidade ... pequenos retoques na normalidade de uma noite no seu estabelecimento. 

A noite está próxima do seu fim e de repente desapareceu. É o primeiro a sair do local ainda com alguns clientes no salão e com o seu STAFF pronto para arrancar as limpezas e arrumar os copos e garrafas das mesas. Quando as mulheres saem já só vêem o lugar de estacionamento vazio porque o chefe não espera por ninguém. Aquele dia tinha terminado, amanhã lá voltará para pedir o seu whisky para mais uma "noite de negócios" ...

 

 Tão certa a sua presença como a facto de as portas abrirem à noite naquele bar.

Todos o procuram, sempre com uma bebida em mente, mas pelas mais variadas razões.
Ou porque querem uma bebida para acompanhar a noite, ou um copo para oferecer a alguém rumo à conquista nocturna ou simplesmente uma bebida para esquecer problemas mundanos.

A bebida é o mote geral, mas ele é bem mais do que um simples homem a cumprir o seu serviço. Mais do que um bartender ele torna-se um amigo, muitas vezes é o confessionário dos clientes que o abordam para mais um Gin depois das rodadas anteriores. Quase como se o mundo se confinasse entre o cliente e ele, com o balcão como encosto.

Impávido e sereno lá se mantém "limpo" na postura, entre limpeza de copos e o derramar de álcool num cálice entre pedras de gelo.
Seja qual for o desabafo era certo que nada sairia dali.
Atura com paciência de Jo todos os "loucos" que pedem rodada atrás de rodada como se a noite fosse para conquistar no imediato; Ouve o facto de aquele empresário de luxo num fato de marca de renome já não amar a mulher e passa o seu tempo entre copos e espera até a esposa já estar a dormir para voltar a casa; Comporta-se solenemente perante os desabafos das mulheres de alta sociedade que se queixam e fazem troça dos maridos que não têm noção da sua vida paralela com "aventuras" pela noite dentro; É o ombro amigo daqueles que naquele balcão dia após dia tentam afogar as mágoas de dívidas e problemas da vida.

Nenhum daqueles que recorrem a ele conseguem bem saber o que vai daquele lado.
Sabe-se que não é de muitas falas e que dá o seu tempo para ouvir os problemas e histórias do mundo que vai passando naquele bar, mas não se abre, como se todos os momentos de desabafo que ouve fazem parte do seu trabalho, como se fosse uma bebida servida igual a tantas outras que vai criar. Certamente por noite ouvirá histórias que dariam um livro, mas tal é o seu profissionalismo que eles voltam e confiam nele para lhe contar o seu dia.


Seja pela bebida, seja pela conversa ele vai lá estar.
Para mais uma noite "on the rocks" com histórias bem servidas em copo.






Podia ser só mais um casamento típico, mas assim não poderia ser o deles.
Mandaram para trás das costas o tradicional (dress code, uma ida penosa a uma igreja e uma panóplia de fotografias "oficiais"), fazem de uma qualquer bomba de gasolina um lugar de encontro rumo ao destino e mesmo com a chuva a aparecer como convidada criam um ambiente de convívio, de relacionamento entre amigos e conhecidos mesmo que nunca se tenham visto antes. O mundo deles, confinado em quase centena e meia de pessoas. 

Os Muse fazem-se ouvir e o estado ao olhar para cima era mesmo para "feeling good" ou não viesse a descer a noiva de chapéu de chuva com as suas Diadora nos pés. O mestre deixa-a ao lado do quase afónico noivo, num fato com pouco mais de um mês, para que se ouvissem os votos. Aí se viu mais um carimbo da singularidade do momento que estávamos a viver ou não fossem os votos da noiva o mais "abacalhado" possível (com pass do IRS pelo meio) para contrastar com um noivo que sacou das cordas vocais para tirar algo mais sentimental.

Depois foi tempo de felicitações à volta das mesas recheadas de petiscos bem regadas com o acompanhamento certo, ao som suave de melodia brasileira enquanto se raptam os noivos para tirar  fotos (mais tremidas ou não). 

Ao entrar entrar no salão principal lá se procura a mesa do Rock respectiva e lá vem o jantar. O convívio nunca deixou de existir, seja na mesa seja entre mesas. A ligação mesmo que não existisse antes foi criada seja por uma gargalhada, um episódio do momento ou porque os gostos a nível de copo eram os mesmos. Tínhamos todos a mesma boa razão para lá estar e isso fazia de todos nós família para quem nos rodeava.

As horas passaram e tudo ia sabendo bem. Tudo o que criaram para nós convidados foi soberbo e vivido de um modo que não dá para ser replicado. Quem lá esteve não pode duvidar que fez parte de uma noite memorável e única para os noivos mas também para os sortudos a quem eles deram o convite para estar lá naquele sábado de chuva. Somos afortunados por vos termos como amigos e por nos terem dado o privilégio de vermos mais um momento da vossa união como casal.

Obrigado por nos deixarem fazer parte do vosso mundo.





Noite cerrada num qualquer recôndito da cidade.
As luzes são apelativas, a chamar aquele saciar da fome que o tempo diurno não cobre. 

Um portentoso indivíduo impõe-se à porta, perante aquele que quer entrar e a porta que serve de obstáculo à noite que deseja. Passado essa paragem com uma nota no bolso era tempo de abrir a porta. A noite começa.

A sala não cria divisões, não discrimina, não julga. Nas mesmas cadeiras revestidas de seda vermelha com mesa redonda encontra-se um mundo conjugado numa divisão. Do banqueiro bem vestido, ao homem de família comum e o jovem mundano que anseia por viver esta vida. Todos com a ideia de saborear aquela noite como deve ser, sem os olhares da sociedade como julgamento de carácter. O barman prepara as bebidas, a companhia que suavizava o ambiente das mesas que se iam preenchendo em pouco tempo. De repente surge o fumo vindo do palco despido, criando o suspense ... o espectáculo iria começar.

Ela entra e é como se o tempo parasse pois muitos estavam lá por ela. Música que puxa o toque, a imaginação, enquanto ela de trajes menores hipnotiza o público com a dança. Tudo real, tudo como se fosse palpável, passível de poder ser de qualquer um ali presente. Em cada batida da música o movimento que deixa louco quem a observa. Porque se calhar aquele banqueiro tem o dinheiro mas só ali sente algum afecto no meio das notas que atira enquanto ela dança, porque aquele homem de família perdeu o encanto pela esposa  e preenche o vazio em vê-la dançar e aquele simples rapaz criou um cenário de amor idílico com a sensualidade que ela cria naquele momento. Uma dança, um erotismo criado para uma sala mas vivido de maneira diferente por todos. Seja como for ela mexe com todo o ambiente. São quase dez minutos que unem a sensualidade, o desejo carnal e o espectáculo numa união que não se explica, apenas se sente. A mulher como centro de um universo concentrado. Um poder em cima de um palco que mesmo com todas as notas atiradas em direcção a ela não conseguem pagar.

Eis que acaba. Os aplausos são a prova que mais uma noite está prestes a terminar, ou não saísse ela do palco. Mesmo com as rotineiras juras de amor dos mais embevecidos por mais uma noite de glamour que rompem a segurança ela fixa os olhos na cortina de volta ao camarim. Para ela não é uma questão de encontrar o amor como muitos ali, é estritamente um negócio, um trabalho. Enquanto eles ainda ficarão no salão ela lá tomará o seu banho, receber o seu envelope por mais uma noite de magia e sair pela porta das traseiras colocando um visto em mais uma noite terminada.
 
As portas já estão perto de fechar. Os sobreviventes tentam regatear por mais um copo ao balcão enquanto são "convidados" a sair pelos seguranças ao mesmo tempo que os empregados limpam a sala. Devagarinho tudo volta ao lugar, cada cadeira no seu sítio, cada toalha limpa colocada nas mesas redondas para a noite seguinte. E em menos de nada, as portas fecham. Mais uma noite terminada.

Haverá mais, numa outra noite cerrada, num qualquer recôndito da cidade.




Tudo estava combinado.
Depois do vai e vem que durou meses entre mensagens de Whatts'App a malta lá se juntou para um jantar de amigos. Era hora de rever o grupo. Cada um à sua maneira se preparava para ir rumo a uma noite de comida, copos e conviver com o pessoal.

Ele já descia as escadas com as chaves do carro na mão quando enviou aquela mensagem à namorada "Vou agora ter com o pessoal. Boa noite, até logo". Colocou o telemóvel no bolso do casaco e seguiu viagem.

Eles já lá estavam quando chegou, alguns já tocados porque a cerveja foi companheira de espera para quem chegou mais cedo, outros ainda estavam a recuperar a sola da sapatilha depois de subir a rua.

Eram as conversas do costume enquanto as horas eram preenchidas pela cerveja entre as rodadas pagas por todos. Os "como vai a vida" entre as piadolas de sempre e o típico "quero ver se vais lá fazer o filme àquela do balcão" para aquele mais fanfarrão. Eis que num relance ele pega no telemóvel. Três SMS recebidas. Do outro lado uma namorada sem resposta que urgia atenção entre o "espero que ao menos dês atenção aos teus amigos já que a mim não dás" e "sais aí com os teus que até te esqueces de mim" ...

Entre o álcool que o sangue já sentiu ele tenta pegar na sobriedade que o momento traz e tenta ligar, mas apesar de chamar só ouve o início do voicemail. Vez e vez sem conta, mas o resultado é o mesmo. Pouco tempo depois recebe mais uma SMS "agora já te lembras de mim, pensei que fosses diferente, mas afinal... fica lá com os teus amigos (e se calhar com as amigas). Já vi que não voltas cedo".

Ele sentiu o encurtar do espaço. Já não sentia o ambiente boêmio, descontraído e bem disposto que os amigos estavam a criar. Não estava a fazer nada de mal, ainda assim sentiu todos os possíveis filmes que a namorada estaria a fazer na cabeça e a missão de tentar que ela atendesse o telemóvel saía sempre furada.

A noite para ele acabava ali. Os amigos perceberam o sucedido e tentaram que ele ficasse mas sem sucesso. O comparça deles estava a ser levado. Cumprimentou todos e saiu com o casaco na mão enquanto o outro tentava mais uma chamada.

Ninguém sabe ao certo o que se passou depois. Se ela finalmente atendeu, se ele teve a chance de explicar e poder assim descansar a alma e se ficou tudo bem.
O que é certo é que não era preciso tal controlo na sua vida ... 


"Olha para as páginas em branco à tua frente com coragem. Agora enche-as com beleza."
Blaine Hogan


Todos aqueles que se idealizam nas palavras que escrevem, seja num simples pedaço de papel ou numa tela de ecrã sabe que é assim que tudo começa sempre: em branco.

É sempre aquela aventura sem fim anunciado porque mesmo que a tua mente tenha criado antes das tuas mãos concretizarem há sempre uma mudança de direcção que cria um toque que não era esperado. Seja porque aquela história de vida que retrata tem afinal mais pormenores de relevância, ou aquele herói de capa (ou sem ela) tem afinal um poder que muda o cenário e salva o dia, ou quando consegues dar aquele toque mais dramático e cru a uma qualquer história sombria que imaginaste num vislumbre de consciência.

Ter uma página em branco à frente é a oportunidade para criar, ou recriar. Para fazer diferente ou emular o que vimos antes, a chance de passar uma mensagem ou de reforçar uma que já o Mundo defende. Toque pessoal ou simplesmente mundano a página não te vai criticar ou julgar, apenas é o teu espaço para te expressares.

Uma palavra impressa ou simplesmente escrita num qualquer canto tem um poder próprio e cabe a cada um ter a responsabilidade para fazer contar essa oportunidade. Há quem procure singrar no mundo difícil das palavras escrevendo livros exibidos nas livrarias para consumo da sociedade, há os outros que em diversas plataformas digitais lá deixam os seus toques com crónicas e artigos só com o lucro de ver mais um pedaço de criatividade ser publicado para (quem sabe) o Mundo ver e outros artistas que vêm outras telas em branco e definem de um modo mais artístico um outro uso para a palavra.

Uma página em branco traz toda uma panóplia de oportunidades e dá a conjuntura neutra para que sejas feliz com o que crias e isso é raro neste Mundo. Aproveita bem todas as folhas em branco que terás nesta vida, porque és tu que escreves os capítulos que se vão seguindo.


Existe sempre na mente de um qualquer escritor o ideal de criar uma história. História essa que faz prender o leitor com as palavras certas e sedutoras, mas também nela existe a vontade de passar uma mensagem seja ela idílica, de lição ou simplesmente uma fase de vida.

Desta vez a minha mente não criou nada, porque o que se segue é real. Somente me atrevo a descrever sendo o mais fiel aos factos possível perante tamanha situação. É a história verídica de um homem, um testemunho de alguém que não recuou perante um desafio e vê nesse desafio de vida mais uma oportunidade de superação e de conquista pessoal. O seu nome é Nelson Rocha.

Sempre foi um inconformado com a vida, ficar quieto nunca foi o seu estilo. Sempre procurou fazer algo novo, entre paixões e opções de carreira, que o pudesse definir como uma pessoa feliz. Artes marciais (praticante e professor), fotografia, curtas metragens e videoclips ... uma panóplia de aventuras, todas com toda a entrega. Sempre directo e orgulhoso do seu comportamento (e temperamento) pouco submisso foi amealhando projectos novos que o levaram a conhecimentos, contactos e vivências enriquecedoras.

Outrora guerreiro noutras modalidades de arte física eis que surge o regresso ao tapete, mas nada é tão simples como parece.

Vai desbravar uma arte de combate que nunca competiu, o Jiu Jitsu Brasileiro, uma arte marcial onde a luta no solo impera e a submissão do adversário é o trunfo para a vitória. Aquele com mais técnica sai vencedor numa luta fatigante. É um recomeço, e como todos os guerreiros há "cicatrizes" que ficam de batalhas passadas. Para poder concretizar este sonho de singrar noutra modalidade Nelson teve que procurar em si o poder de superação para ultrapassar uma lesão grave e não olhou a meios para o fazer. Com uma personalidade "training" bem acentuada recuperou a forma física com uma revolução a nível de fitness e com os hábitos alimentares necessários para o seu corpo ser bem nutrido e preparado para cada sessão de treino, para cada batalha que se avizinha. 

Tenho o privilégio de poder chamar amigo ao Nelson e não tenho dúvidas que ele a cada dia que passa se sente mais preparado. Não só pela batalha física que teve de aguentar, mas porque a sua personalidade e querer mental é fortíssimo e vai querer que esta experiência seja a melhor possível. Mais uma para o seu currículo invejável nas artes marciais. O tatame chama por ele
Ele vai voltar à competição este ano e logo numa área "desconhecida" para ele ... não podia haver melhor desafio.

Que venham essas batalhas, desejo-te a melhor das sortes meu amigo.



Por vezes precisamos de um olhar para nos rendermos a alguém. Ao contemplar aquela pessoa que nos mexe ficamos melhor, seja pela maneira como sorri, como os olhos reluzem ou apenas pelo modo o cabelo dela se mexe. Neste caso o amor até pode ter começado assim, mas sobrevive de outra maneira, com o toque. E é aí onde está a magia.

Passeavam de mão dada numa qualquer destas noites frias de Inverno. Agasalhados, para que o frio não vencesse a vontade do passeio, mas sem nunca deixar que aquelas mãos juntas se largassem. Na outra mão de cada um estava a fiel varinha, que apalpava o caminho e os guiava. Apesar do contratempo que podia ser não poder contemplar o que os rodeava isso não eram impedimento para que sorrissem enquanto trocavam palavras rotineiras e carinhos.

Não se subjugaram ao inferno que podia ser o ter perdido a visão, ou se passaram essa guerra venceram-na sem contestação. Ao ponto de conseguirem brincar com a situação quando ele a larga para colocar um copo de plástico num caixote do lixo e ela exclama "Vê lá se pelo caminho não vês uma mulher jeitosa e te perdes" ... o sorriso dele ao ouvir aquilo arrebatou-me. Era clara a ligação, algo que dura há muitos anos e que só os tem unido ainda mais. Talvez por partilharem a mesma deficiência, ou simplesmente porque se amam apesar disso.
Seguiram rua fora, ao som do toque das varinhas sem esbarrar na mundana multidão que vinha na direcção oposta. Todos no mesmo mundo, na mesma rua, mas eles pareciam num momento só deles.


 Estavam mais felizes do que muitos casais "normais". Numa sociedade onde nos acostumamos a ter tudo como garantido é refrescante ver que por vezes, aqueles que não têm tudo isso conseguem nos ensinar os valores certos.


A porta do carro bate. A chuva cai incessante enquanto ele caminha para a porta quando o escuro da noite se torna suavemente no cinzento da manhã.

Ao subir as escadas do prédio tenta silenciosamente procurar as chaves e abrir a porta. Entre passos bem ritmados procura passar o seu hall de entrada e chegar ao quarto para poder repousar. Mas a rotina continua, ela está a acordada. 

Encostada à porta da sala fica a olhar para ele, entre o lamento e a raiva de quem volta a esperar pelo marido a altas horas da noite. Lá voltou de mais uma noite de devaneio, a cheirar a álcool e a fragrância de outras mulheres. Ela já não tem força para discutir, para criar uma cena, para reprimir tal acto de alguém que outrora lhe disse que só conseguia amar uma mulher. Só sente tristeza do momento que vive; Ele tem tem o semblante de quem desistiu, tanto de procurar uma explicação do que faz e do matrimónio que contraiu. Já não vê nela o que o seduz e vê noutros vícios o escape de uma vida que lhe sabe a miserabilidade.

Uma noite igual a muitas outras. A chama de uma vida a dois tornou-se um tornado de emoções pouco saudáveis para um homem que nem consegue conviver com a esposa e tenta atrasar sempre o seu regresso a casa desviando-se sempre por caminhos dúbios e para uma mulher que já não consegue esconder o desgosto de ver um homem bem diferente daquele que já amou. A cola que ainda une um casamento em cacos é o irresponsável orgulho de quem não tem a coragem de dizer que tudo acabou. Preferem enganar as multidões, entre sorrisos falsos entre amigos e os fatídicos "está tudo bem" do que terminar esta fase que os desola. A consequência são a repetição destas noites que têm sempre o choro dela na cama enquanto ele se lamenta no sofá ainda acompanhado de uma bebida.

Nem todas as histórias acabam bem, têm aquele final feliz e bonito. Alguns têm na sua história páginas negras como esta. A história deste qualquer homem que se deixou levar por pecados da sociedade que o corromperam e fizeram perder a mulher que amava é da mais mundana que existe, e a tristeza dessa mulher que já não sabe o que é uma noite ao lado do homem que ama e de se sentir feliz é a sina de tantas outras mulheres neste mundo. Que o orgulho fique de lado quando se procura a felicidade.
A noite gelada, passível de ser igual a tantas outras de Inverno, trouxe consigo um adorno. O nevoeiro caiu sobre a cidade, apenas interrompida na sua poderosa plenitude pelas teimosas luzes de rua e pelas luzes dos carros que rasgavam o manto para seguir o seu caminho.

O frio era bem patente e fazia-se sentir com preponderância, bastava observar um qualquer transeunte que passava na rua embrulhado entre agasalhos que pareciam nunca trazer o calor necessário para o conforto que se queria.

Ele era como eles, mas embutido de uma missão. Entre casaco e cachecol ele tinha uma promessa a cumprir. De olhar fixo lá trespassava o nevoeiro de passo acertado rumo ao destino: o ponto de encontro. Tinha prometido à sua amada que estaria lá aquando a chegada dela, não ia deixar que um mero nevoeiro o quebrasse dessa demanda.

O nevoeiro retocava as ruas planas ao esconder o que vinha mais à frente e fazia das ruas a pique autênticas escaladas onde não vias o cume. Mudava-se assim a paisagem, a seu bel prazer.

Ao chegar, enquanto aguardava por aquele beijo quente da namorada, limitou-se ao silêncio e olhou em seu redor contemplando aquele manto que cobria a cidade. Um adorno tão singelo e simples que fazia tudo mudar, ou os carros não tivessem que desacelerar e as pessoas terem de acertar o passo por tamanha ofuscação vinda dos céus.

Ao fundo a pequena miragem torna-se mais certa e real. É ela que se aproxima do local acordado. Já de sorriso pronto ainda que faltando uns metros para o agarrar, ele já se sente presenteado. Eis que se beijam e aquecem o coração, como é apanágio. De mãos dadas seguem o seu caminho, entre o nevoeiro que serve de paisagem noturna.