por Daniel André Teixeira'




"A senhora pode esclarecer o Tribunal e explicar o que se passou naquela noite?"

A pergunta era clara e direccionada a ela.
Porém nunca a resposta foi tão complexa e complicada de criar ou exprimir.

A fatídica noite começou como sendo uma das demais rotineiras desta vida.
Ela seguiu para casa após um café. Sozinha, serena, simplesmente a fazer o caminho para poder finalmente descansar no seu lar. 
Apanhou o comboio, o último daquele dia. Seguiam nele mais quatro pessoas, desconhecidas umas das outras, apenas à espera da sua estação de saída. Entre solavancos a viagem continuava, mas iria ter um rumo inesperado.

 Eis que o comboio pára e ele entra. 
Mudo, olhar frio e emsamblante carregado de quem se calhar tinha afogado as mágoas num final de uma garrafa. Lentamente encosta-se a um dos postes da carruagem. Perante os solavancos do velho comboio nocturno eis que acidentalmente bate num dos passageiros que prontamente lhe berra "Vê se te seguras seu bêbado!! Seu vagabundo". O olhar frio virou de raiva e sem contemplação saca uma faca do casaco e ataca o passageiro veemente com várias facadas no peito. Perante o sangue desvariado e os berros dos outros passageiros ele, sedento e cego, procura-os e volta a disferir facadas constantes sem dó da dor que provocava. Quatro mortes sem dó nem piedade, sem razão ou argumento.

Ensaguentado procura mais vítimas e eis que a encontra. Porém ela não gritou. Apenas ofegante com toda a situação encontrava-se abaixada e abrigada entre bancos de comboio na esperança de aquela não ser a sua última noite. Eis que o olha nos olhos e, quem sabe por magia, ela não viu o monstro que esfaqueou quatro almas em poucos minutos; Ele, mesmo empenhando alta a faca ensaguentada, não a atacou. Apenas respirava a alto ritmo e fulgor como se a mente não deixasse que a faca magoasse aquela mulher.

O entrelaçar de olhar continuou intenso. Entre o silêncio ela suavemente colocou a sua mão na cara dele, mesmo enquanto ele não arredava de ter a faca em riste. Ela viu algo ali, um sentimento que superou o medo e o horror. Lentamente chegou a ele de tal modo ternurento e próximo que ele acaba por largar a faca e ficou sem reação perante tal gesto. Com lágrimas nos olhos a escorrer na cara cheia de sangue aproveitou a paragem do comboio e saiu a correr da carruagem. Ela manteve-se estática e sem reacção. 

Mais tarde ele foi encontrado por um agente que, ao ver todo aquele vermelho "pintado" nas roupas dele o deteve. Confessou o crime quase sem pressão e mais tarde encontraram-na para ela poder prestar declarações sobre o que se tinha passado. E ali estavam de novo no mesmo lugar, desta vez sob o olhar atento da justiça.

Enquanto testemunhava tentava não olhar para ele, com receio de magoa-lo como quem é a força final que o vai condenar. A mulher que amou o monstro estava ali, a dizer ao mundo que aquele homem assassinou quatro pessoas, mas não conseguia dizer que o ama desde essa noite.

Sai em lágrimas do tribunal por saber que ele seria condenado sem contemplação ... e sem nunca lhe poder dizer o que sente. Ela viu o horror, mas sem explicação amou a criatura que o fez.





O mundo é feito dos contrastes inegáveis e flagrantes.
Poetizando e suavizando com bonitas palavras podemos afirmar que é um mundo de luas, de diferenças, de toques e retoques, de forças e fraquezas, enfim como nós mundanos apelidamos de "altos e baixos".

Uns possuem o ouro desta vida, o facilitismo, as conquistas deste mundo à mão de um simples desejo ou prazer como se a realidade utópica fosse servida numa bandeja de prata de um refinado restaurante. Não há problema sem solução, não há obstáculos inconvenientes para as vitórias pessoais. A vida presenteou-os com essa dádiva da despreocupação com o alheio, onde só a sua zona de conforto é fulcral para a sobrevivência. Boas roupas, casa com ostentação e luxo, carro a estrear, ao seu lado um conjugue que foi bradado com a mesma dádiva. Um mundo dentro de um outro que apenas serve de paisagem adicional a um estilo de vida que cria na sociedade uma elite de "Reis". Não são intocáveis, mas estão no confortável camarote deste teatro onde a peça principal é a vida.

Outros lutam por cada hora e por cada luxo que esta vida lhes lembre de proporcionar.
Esses sentem cada capricho, cada frio na espinha, cada golpe que a sociedade se lhes apronta. O seu micro mundo está subjugado na vida mundana dos demais. O infortúnio em pessoa, a figura de alguém que parece ter sido esquecido e ostracizado num mundo que tanto se apregoa que se quer justo e equilibrado. Os seus esforços são sucessivos, a sua luta é interminável. Cada canto pode ser uma "casa", cada resto pode ser a "refeição", cada trapo é o seus vestir ... São os "Vagabundos", aqueles que no mesmo teatro são os figurantes sem importância, triste e sem valor real para o desenrolar da história que os "Reis" em cima sentados aplaudem sempre a sorrir e a festejar.

É o contraste de um Mundo, facilmente replicado na nossa sociedade estejamos em que lugar for.
Porque esta peça de teatro nunca acaba, apenas tem maneiras de mudar a história.